Boemia gramatical: tenho QUE beber ou tenho DE beber?
Os gramáticos divergem entre si; mas tanto faz, desde que você beba
Os puristas condenam “tenho que” no lugar de “tenho de”, alegando que o que não é preposição. Em favor deles, pode-se alegar que, tradicionalmente, usava-se sempre “ter de” (em vez de “ter que”) quando se desejava exprimir obrigação, desejo ou necessidade:
“Tenho de beber uma pinga logo... senão eu piro.”
“A cerva tem de estar estupidamente gelada.”
Já o “ter que”, antigamente, era usado exclusivamente para relatar a existência de coisa por fazer, de coisa que ainda não foi feita, ou seja, só era empregado em casos em que o que funciona como pronome relativo: “Você tem muito (o) que beber ainda na geladeira (ou no alambique)” ( = ter [muito] o que beber, ter algo para beber, tem [muitas] doses para beber).

No entanto, o tempo não para... e muito menos a língua, embriagada de variações. Graças a um cruzamento sintático entre “ter (algo) que beber” e “ter de beber”, consagrou-se – principalmente entre escritores e poetas alcoólatras – a forma “ter que beber” (no lugar de “ter de beber”) com o sentido de desejo, obrigação ou necessidade. Ou seja, modernamente, tem-se usado o que com valor de preposição. Contra esse hábito, insurgem-se gramáticos mais caretas, como Sacconi e Napoleão, cheios de nove-horas com quem bebe altas horas: o primeiro até reconhece o uso de “ter que” com sentido de necessidade, mas não o recomenda; já o segundo não quer nem papo e só admite o “ter de”, “pois o ‘que’ jamais será preposição!”, esbraveja.
Mal sabem eles que é tarde demais para censurar, pois grandes escritores – até os sóbrios, como Machadão e Ruy Barbosa – já deram a essa construção cruzada grande acolhimento, “de forma tal, que ela é, hoje, um fato da língua”, diz Rocha Lima em sua gramática. Cegalla, companheiro de rodadas, faz sinal de joinha e diz não haver erro em “ter que” nas frases em que os caretas só aceitam “ter de”, alegando que tal sintaxe já se incorporou ao português atual. Bechara brinda com eles e declara que o que funciona aí como “verdadeira preposição”. E logo em seguida o velho Celso Luft senta à mesa e reforça a dose: “Hoje, ao menos no Brasil, ter que não só é sinônimo de ter de, mas praticamente seu substituto. Ter de, arcaizante, é quase afetado, restrito à escrita formal”. E quem se preocupa com formalidades quando tem que tomar umas, não é mesmo?

O único alerta que o mano Cegalla faz é que, se você curte o tradicional “ter de”, deve ficar ligado pra não usá-lo em frases em que o “que” é pronome relativo:
“Putz... Geladeira vazia! Nada temos que beber aqui em casa.”
“Cê ainda tem muuuuito que beber pra esquecer essa mulher...”
“Acabamos com o estoque. Nada mais tínhamos que beber naquele boteco.”
SAIDEIRA: Napoleão, careta e abstêmio, condena o uso de “ter que” com sentido de necessidade, desejo ou obrigação; Sacconi até reconhece o uso indiferente de uma forma e outra, mas é meio quadrado e só aconselha o “ter de” quando há ideia de necessidade; já Rocha Lima, Cegalla, Bechara e Celso Luft liberam geral e ensinam que se pode, sim, dizer “tenho que beber” em vez de “tenho de beber”,1 desde que a pessoa beba e seja feliz.
Para que não restem dúvidas: essa lição não é exclusivamente alcoólica e serve para qualquer verbo empregado no infinitivo com as locuções ter de e ter que – e não apenas para o verbo beber.
Tenho que admitir que esse texto está muito bom
Tem gramáticos que sonham com o brasileiro escrevendo e falando em latim. Jesuis, tanta aversão a mudanças!