Uma da manhã, duas da madrugada, três da noite: a diversidade das altas horas
Há uma única forma correta pra indicar as altas horas? Não, e quem acha que só existe uma precisa sair mais nesses horários.
Uma da manhã, duas da noite, três da madrugada. Existe uma única forma correta pra indicar essas altas horas?
Não, e quem acha que só há uma precisa sair mais durante as horas mortas, conhecer usuários noctívagos da língua e descobrir a diversidade de termos existentes para esse período do dia: madrugada, manhã e noite... Você é livre pra escolher.
Quem se baseia apenas no rigor lógico e literal afirma que, sendo “madrugada” o período situado entre a zero hora e o amanhecer, só faz sentido dizer “duas horas da madrugada”. Esse, além de ser um uso antigo e consagrado, é o indicado por vários manuais de redação, sendo recomendado por consultoras linguísticas como Thaís Nicoleti (Folha de S. Paulo) e Dad Squarisi (Correio Braziliense). Gramáticos como Napoleão e Sacconi aparentemente só empregam essa forma.
Mas... quem conhece de fato a Língua Portuguesa sabe que ela nunca aderiu a toda essa rigidez de definições e sentidos. Tanto que, na contramão desse literalismo, as acepções dos dicionários não se restringem a tratar “manhã” apenas como aquela parte do dia que vai do nascer do sol ao meio-dia; elas também se referem à palavra como o tempo compreendido ENTRE MEIA-NOITE E MEIO-DIA “para efeito de designação das horas” (Houaiss). Por isso mesmo é que os dicionaristas registram, entre as acepções da palavra “madrugada”, a palavra “manhã”, sentido que se vê reproduzido em seus exemplos de uso: Aurélio registra “duas da manhã” e Houaiss, “três horas da manhã”.
Não é nenhuma invenção deles: referir-se às horas da madrugada como “da manhã” é uso bem antigo e facilmente encontrado em obras literárias, matérias jornalísticas, documentos oficiais e publicações diversas – de vários séculos passados – de autoria da Academia das Ciências de Lisboa, do Império do Brasil, da Gazeta de Lisboa etc. Machadão, Aluísio Azevedo, Raul Pompeia e até mesmo literatos chatinhos, preciosistas e puristas, como Coelho Neto, adoravam um “duas horas da manhã”. No âmbito das gramáticas brasileiras, é a forma usada por Bechara, Luft e Moura Neves.
Outra forma tão antiga quanto as anteriores é o emprego de “uma / duas / três horas da noite”, embora esse uso vá se mostrando mais restrito e reduzido que os demais à medida que o tempo avança na madrugada e o dia vai amanhecendo: varia-se entre “cinco horas da manhã” e “cinco horas da madrugada”, por exemplo, mas não se ouve nem se lê – pelo menos não com a mesma frequência que os usos anteriores – “cinco horas da noite”. De qualquer forma, aqui o rigor lógico já não conseguiria desautorizar o uso como tenta fazer com “manhã”, uma vez que noite é naturalmente o período de tempo entre o ocaso e o nascer do sol. O fato é que Said Ali, Cegalla e Celso Cunha usam e citam exemplos desse uso em suas gramáticas, estando esse emprego também presente em dicionários de várias épocas e em diversos documentos oficiais portugueses e brasileiros. Na literatura, então, nem se fala: Eça de Queiroz, José de Alencar, Camilo Castelo Branco, Machadão, Fernando Pessoa e Clarice Lispector escreviam dessa forma em suas obras.
Pra fechar a noite: você provavelmente preferirá dizer “uma / duas / três horas da madrugada” se for adepto do rigor lógico/literal ou precisa assumi-lo por seguir algum manual ou critério técnico, científico ou profissional; se diz “duas da manhã” ou “duas da noite”, está apenas reproduzindo usos existentes há séculos e anda por aí, altas horas, na companhia de vários literatos, dicionaristas e gramáticos (boêmios ou não).
sensacional!