O superlativo absolutíssimo sintetiquérrimo
“Brigam os gramáticos, e a discussão ainda está sob julgamento.” (Arte Poética, Horácio, 19 a. C.)
A língua escrita, sempre atenta às lições escolares, aprendeu que o superlativo absoluto sintético de certas palavras (cheio, feio, sério) deve ser -iíssimo (cheiíssimo, feiíssimo, seriíssimo); mas a língua falada matava as aulas para andar com variantes de rua e acabou aprendendo um monte de coisas erradas. Uma delas foi fundir as duas vogais numa só na pronúncia: ‘cheíssimo’, ‘feíssimo’, ‘seríssimo’, o que, claro, acabou se tornando má influência para a bem-educada língua escrita, fato que hoje divide seus pais adotivos – os gramáticos.
Explicamos melhor: tradicionalmente, vários adjetivos terminados em ‘-io’ apresentam, no superlativo absoluto sintético, somente o sufixo erudito -iíssimo. Mas alguns deles – como ‘precário’, ‘sumário’, ‘necessário’ e ‘primário’ – receberam também, por meio de crase (fusão entre as duas vogais) na pronúncia, a terminação -íssimo: cheíssimo, sumaríssimo, necessaríssimo, primaríssimo, formas que, a despeito de qualquer normativismo, passaram a ter preferência em virtude da eufonia.
O -iíssimo, pelo menos hoje em dia, soa como espécie de ‘superlativo absolutíssimo sintetiquérrimo’ (ou, a rigor, sinteticíssimo, se você não quiser decepcionar os gramáticos), que parece querer ser mais superlativo ainda que o -íssimo. Em suas lições, Bechara chama a atenção para as palavras terminadas em -io que, na forma sintética, apresentam sempre dois is, “por seguirem a regra geral da queda do -o final para receber o sufixo”: cheio (cheiíssimo), feio (feiíssimo), frio (friíssimo), necessário (necessariíssimo), precário (precariíssimo), sério (seriíssimo), sumário (sumariíssimo), vário (variíssimo). Esquisitíssimo, não? Mas ele é irredutível: “Ainda que escritores usem formas com um só ‘i’, a língua-padrão insiste no atendimento à manutenção dos dois is”, alega.
De parte dessa lição compartilha seu colega paulista Napoleão, que ensina também ‘seriíssimo’, ‘propriíssimo’ e ‘maciíssimo’; no entanto, discorda de certos superlativos de Bechara: para Napô, o superlativo de ‘precário’, ‘cheio’ e ‘feio’ só tem uma vogal ‘i’ mesmo: ‘precaríssimo’, ‘cheíssimo’ e ‘feíssimo’, e não ‘precariíssimo’, ‘cheiíssimo’ e ‘feiíssimo’, como ensina o gramático pernambucano.
Um passo à frente de seus colegas, o mineiro Celso Cunha ensina em sua gramática que, em lugar de formas superlativas ‘seriísimo’, ‘necessariíssimo’ e outras semelhantes, a língua atual prefere ‘seríssimo’, ‘necessaríssimo’, com um só ‘i’ mesmo. Com ele está o catarinense Cegalla, que justifica essa preferência da língua atual “por ser mais eufônica, sem o desagradável hiato i-í”, dando, como corretos e mais usados, superlativos como ‘cheíssimo’, ‘sumaríssimo’, ‘seríssimo’, ‘feíssimo’, ‘necessaríssimo’, ‘precaríssimo’, ‘ordinaríssimo’ e ‘primaríssimo’. Faz coro com eles o gaúcho Celso Luft, para quem admitir apenas o -iíssimo para esses adjetivos é coisa de purista. Ó... te chamaram de purista, Bechara.
É claro que, nessa, estou com os Celsos Cunha/Luft e Cegalla: sou #TeamSeríssimo, mas vale observar que esses gramáticos admitem ambas as formas como corretas. Eis a lição mais moderna: deixar que cada um escolha o superlativo que lhe soe melhor. Afinal de contas, a eufonia será sempre um dos critérios de correção mais subjetivos da gramática.
Gosto do crescendo: íssimo, iíssimo, érrimo, gramatiquissimérrimo. É bom ter um arsenal completo nessas horas.
E falar -iíssimo é chiquésimo